sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Prazer e horror na sociedade produtora de mercadorias

Atanásio Mykonios

Parece que a degradação humana não tem limites. Os seres humanos são lançados à própria sorte e sobre eles há o peso da destruição e do abandono absoluto. A intoxicação dos indivíduos revela, de forma ainda mais cruel e trágica, a intoxicação social e todos os seus veios. O temor pela catástrofe se junta à ansiedade pela realização plena dos sujeitos, como se o mundo terminasse amanhã.
Vivemos um paradoxo estranho na atualidade. De um lado, a educação social para o prazer se estende para todas as formas de consumo, para todas as condições de comportamento, especialmente para o afetivo e as escolhas individuais. A sociedade educativa nos educa para o prazer, mas não tem controle sobre ele, ela sabe o que fazer até que o prazer siga os padrões para a sua aquisição, mas não se sabe como agir sobre o próprio prazer. Esta contradição é latente.
O prazer é um dos elementos mais significativos dessa sociedade – cotidianamente, o prazer nos interpela. Somos convidados a experimentar o prazer de várias formas. A publicidade deve estimular-nos a um prazer em expectativa, ou seja, a ser realizado quando da aquisição de mercadorias. Os estudos se aprofundam nessa área, há um esforço interdisciplinar para atender as necessidades do mercado.
A própria mercadoria, em si, carrega sua metafísica com o escopo de atrair para si a atenção necessária a fim de que seja consumida, mas não sem prazer nem realização pessoal.
Não podemos nos esquecer do prazer que a comida nos dá. As contradições se apresentam de forma crua. Ao mesmo tempo em que comer é um ato necessário à manutenção de nossa constituição, é uma ação de grande valor social e estético. A sociedade brasileira está comendo cada vez mais, estamos socialmente mais obesos, não mais felizes, de alguma forma, porque a obesidade conflita com a estetização da sociedade produtora de mercadorias.
E convivemos com o inferno das drogas que nos têm dado ainda mais prazer. Prazer que é escamoteado socialmente e tratado de forma moral. Cabe aos indivíduos decidirem a respeito de seus prazeres, alguns são lícitos, outros devem ser proibidos. A vida miserável dos sujeitos sociais é destinada ao cumprimento cego de uma determinação compulsória e abstrata – trabalhar e consumir.
Somos adictos socialmente, nossa perversão não nos contentamos em controlar os indivíduos, é preciso colonizar seus corpos e suas consciências. O sonho de atingir um estado livre de consciência, desde Platão se tornara um objetivo formal especialmente do Ocidente. A liberdade do corpo implicaria liberdade absoluta da consciência. Estar livre é viver no reino do prazer sem limites e nesse sentido, a consciência é o lugar para que isso fosse efetivado.
Mas eis que o prazer tem nos dado outra face de horror. A iminência do prazer tem causado grandes transtornos psíquicos em pessoas que se sentem ameaçadas pela perspectiva do descontrole face ao prazer. Ele nos é oferecido e, mesmo que seja uma estratégia de mercado estimular as sensações e o prazer ao extremo, é fato que o prazer é algo que nos iguala.
Temos de considerar, ainda, a questão da demonização do prazer. Ele nos é oferecido e espera-se que os indivíduos, à moda de Kant, tenham autonomia para não aceitarem seu oferecimento que, a rigor, o identificamos com uma espécie de demônio que sabe de nossas fraquezas e nos engana, se aproveitando de nossa condição de incautos. Nossas necessidades se confundem com o prazer de que necessitamos para satisfazer outras tantas necessidades.
O prazer permanece no horizonte social. Mas a culpa também nos persegue. Somos todos perseguidos pelo fantasma que nos assombra. O fantasma do prazer com várias faces, um monstro que nos instiga ao descontrole.
Por exemplo, a mesma sensação que o açúcar nos dá é perseguida pelos diabéticos com os alimentos dietéticos. O que importa é sentir a mesma coisa e o mercado produz de tal forma que o prazer é reproduzido indefinidamente. O açúcar faz mal ao diabético, mas o prazer não.
Assim é com o crack. A dependência química é um fator que nos mostra a devastação herdada com o uso do crack. Mas é um dos elementos da questão. O acesso mercadológico da droga fez com que as camadas menos favorecidas tivessem condições de consumir o crack.
E com isso, assim como o fato histórico de que na sociedade atual são os indivíduos responsabilizados pelo próprio consumo e por suas necessidades, os usuários de crack são deixados à própria sorte. O tratamento, proporcionalmente, é infinitamente inferior às necessidades quantitativas de resgate dos indivíduos adictos.
Estranhamente, os indivíduos são acompanhados até adquirirem o prazer, mas ao consumirem-no, são abandonados de modo absoluto. Se cada um se tornar um esquizofrênico, um idiotizado ou um culto, não importa mais ao mercado. Caberá aos psiquiatras, aos sacerdotes, aos médicos e aos policias tratarem dessa devastação social.
Ao desbaratar a comunidade de usuários da Crackolândia, a cidade de São Paulo se viu diante de uma realidade que para ela era parecia invisível. Os usuários também têm outras necessidades, eles comem, bebem, dormem e espalhados se tornaram um problema.
Isso revela um aspecto interessante na sociedade produtora de mercadorias. Quanto mais o valor baixa, em função dos processos produtivos, mais o prazer se espalha, diga-se, o prazer proposto pela sociedade produtora de mercadorias. Nesse sentido, não podemos deixar de considerar que a produção de crack é, em última instância, produção de mercadoria, barata ou não, é mercadoria e que revela a face absurda do processo produtivo.
Não faz diferença se estamos submetidos a um bombardeio de prazeres instantâneos ou se seremos obrigados mergulhar em uma espécie de refletirmos tantricamente sobre nossa existência. O prazer será nosso companheiro daqui para frente.
Viver na perspectiva do fim do prazer é tão temerário quanto a sua escassez.
Teremos de viver com uma avalancha de mercadorias e um universo de prazeres. Ao que tudo indica, todo o prazer do mundo será um modo de instituição de uma civilização do prazer, até que a exaustão do capitalismo nos coloque na decisiva fase em que teremos de refletir sobre as necessidades impostas pelo prazer.

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